O Spectrum
por Licínia Quitério
Foi o primeiro computador a entrar cá em casa. Duas caixas pequenas, com seu ar misterioso. Duma delas saiu o dito ZX Spectrum, da outra uma impressora da falecida Timex, mais uns carregadores que pesavam dez vezes mais que alguns dos actuais. O espectro solar ali estava, pintado no canto inferior direito, as cores do arco-íris a alegrarem o negro, a assinalarem o nome de baptismo da máquina.
Na casa ouvia-se já falar de programação e programadores, fosse lá isso o que fosse para os meus ouvidos ignorantes perante tão inesperada invasão de progresso.
Assim começa a saga dos cabos a correrem da parede para o chão, do chão para a mesa, cuidado não tropecem, a gata que não se atreva.
Com este primeiro, não me atrevi a mais do que a olhá-lo, a admirar-me ao vê-lo obedecer a ordens de gestos sabedores. Foi um ligeiro encanto, à distância conveniente, nada de namorar um desconhecido, tens mais que fazer, deixa lá o brinquedo para quem sabe do assunto.
Só mais tarde me afinquei a utilizar um computador para os meus escritos. Foi quando chegou o Armstrad, bicho volumoso, apresentável, a piscar-me o olho, vamos lá ver do que és capaz, ousadia não te falta. Foi uma longa luta, confesso, um desafio permanente, na tentativa de obter reais proveitos da tecnologia que ai estava, ao meu dispor, mas cheia de mistérios que eu procurava desvendar.
O seu mais recente sucessor, fininho, portátil, faz agora parte do meu dia a dia, quem havia de dizer ao velho Spectrum que dependente da maquineta e seus apêndices me havia de tornar.
Tudo isto porque, em arrumações de Verão, de dentro de caixas, dentro de malas, dentro de sótão, se deu a aparição do que já nem sequer sabia que existia cá em casa. Assim me pus a recordar como foi que tudo isto começou.
Há sempre algo a principiar para nos mudar a vida. Neste caso, para melhor.
A Metade de um Homem e A Tribo (em publicação) – participações em antologias – Cintilações da Sombra 2; Cintilações da Sombra 3; Clepsydra – e uma tradução (do castelhano) O Vizinho Invisível, de Francisco José Faraldo.
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.